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quarta-feira, 21 de agosto de 2013

VARIAÇÕES SOBRE O BAIÃO


REVISTA DA MÚSICA POPULAR [Nº 5 - fevereiro de 1955] 
                            Por Guerra Peixe 

       Quer seja como dança ou música – cantada ou instrumental – o baião apresenta aspectos diversos, constituindo difícil tarefa traçar as suas características mais acentuadas. Isso naturalmente, devido à escassez de material colhido nas fontes genuinamente populares, que possibilitasse a comparação dos exemplares e a conclusão sobre a variedade que os documentos devem oferecer.
        Recentemente, Batista Siqueira assinala que “baião” é corruptela de “bailão”, ou melhor, de “baile grande” [Influência Ameríndia na Música Folclórica do Nordeste, pág. 72]. O autor se apóia em Gustavo Barroso ao explicar o processo de deformação da palavra na voz do povo brasileiro. O vocábulo não nos pareceria distanciado dessa origem se considerássemos os arcaísmos e populismos portugueses sobrevivendo no linguajar nordestino, embora tantas vezes tomando forma nacionalizada. Em Portugal se observa a expressão “balho” para enunciar o “baile” ou danças lusitanas, podendo advir daí essa forma brasileira que, no supor de Siqueira, nomeia o nosso baile popular. Ainda, o termo pode provir de outra fonte, pois “Baião” é o nome de um escritor português, mencionado na “Enciclopédia e Dicionário Internacional” [vol. X, pág. 5907]. Todavia, a palavra pode haver sido adotada em Portugal após o seu uso inicial no Brasil.
        Por outro lado, acredita-se que “baião” venha a ser corruptela de “baiano”, opinião da qual compartilham alguns dos nossos estudiosos mais autorizados, talvez por se julgar que a dança tenha se originado no lundu – uma forma musical popular que, em certa modalidade, se teria designado lundu-baiano. “Baiano” indicaria, então, a procedência geográfica: Bahia. Não obstante, o processo poderia ter se dado inversamente, quer dizer, de “baião” teria surgido a expressão “baiano”. Tal como o “Maneiro pau” – outra forma de dança popular – que nada tem a ver com Minas, embora seja este o modo pelo qual o nordestino chama o “Mineiro pau”. Ou, como na questão do “fardo português”, que os estudiosos, baseados nos mais antigos registros, afirmam haver sido criado no Brasil Colonial, sem que até hoje haja contestação e muito menos prova em contrário.
        Uma das mais salientes características do baião é sua desconcertante variedade, especialmente rítmica, contrastando fundamentalmente com esquemas estandardizados da discografia comercial popularesca e conseqüente esteriotipia dos seus valores mais destacados. 
        “Baião” e “baiano” são vocábulos que se aplicam indiferentemente a diversas manifestações populares de música e dança. Ele é ouvido, por excelência, no folguedo Bumba-meu-boi, e, sob este aspecto, é mencionado numerosas vezes por Gustavo Barroso e outros autores. Entretanto, cabe aqui perguntar: São baiões todas as peças musicais do referido divertimento? Evidentemente não, pois no Bumba-meu-boi há, por exemplo, o cântico da Pastorinha, a cantoria da partilha do Boi “morto” e, ainda, o velório dedicado ao “animal” – uma curiosa espécie de canto-fúnebre brasileiro. Afora estes, outros cânticos são ouvidos na folgança, sem que sejam exatamente baiões.
        É comum, no Maranhão, as orquestras populares executarem números de música, para dança, em que tomam parte cantadores. Quando as vozes se calam, um solista instrumental se destaca ao improvisar variações sobre uma base harmônica, para, algum tempo depois, os cantadores retornarem à cantoria. Esse interlúdio instrumental é destinado ao descanso das vozes, sem que a dança seja interrompida. Bem, o trecho instrumental improvisado é, lá, chamado baião.
        As Bandas-de-pife de todo o Nordeste executam o seu baião, como música instrumental. Consta de um pequeno tema sobre o qual os pifeiros improvisam infinitas variações. Acredito que essas Bandas executam também o baião cantado, pelo menos quando animam os bailes em que tomam parte.
        Passando por Conquista, cidade situada no Sul da Bahia, fui informado, por gente do povo, que ali se dança o baião. Este, porém, se assemelha aquela espécie de música que é conhecida por “tango”. Trata-se do “tango brasileiro”, ou “tanguinho”, cuja versão urbana também é conhecida por “maxixe”.
        Diferindo completamente em sua estrutura, baião é também a peça executada pela orquestra dos Cabocolinhos recifenses. Essencialmente instrumental, viva e apressada, tem lugar quando se realizam as manobras deste divertimento, isto é, nos momentos dançados e intercalados à sua representação dramático-coreográfica.
        Do sentido de música “alegre”, “variada” e “apressada”, parece haver surgido, do baião, a aplicação de vocábulos derivados, exatamente para reforçar a indicação desse sentido. Assim, a Banda-de-pife executa uma peça musical ainda mais acelerada que o baião, e que, como este, se compõe de variações sobre um tema: é a “abaianada”. Mesmo nos cultos africanos do Recife o termo fez a sua incursão, pois certo toque [espécie rítmica], quando executado em função do caráter austero de algumas “toadas”, é designado Moçambique. Se a “toada” não é muito “forte” e permite aos músicos o emprego de certas liberdades, estes colocam em relevo a sua capacidade de criação rítmica e a técnica de execução em conjunto, passando a fazer tantas variações quanto comporte a base rítmica do toque Moçambique. Agora, porém, o toque passa a se designar Moçambique-abaianado ou Moçambique-variado – ou, então, simplificando a tratamento, abaianado ou baiano. No modo variado, o toque exige aceleração do andamento, impulsionada pelo entusiasmo dos iniciados. O mesmo processo, com idênticas particularidades, é repetido no toque Batá-abaianado.
        As derivações referidas acima já deviam estar em uso no século passado, pois, Mário Sette [“Arruar”, pág.170], registra uma “modinha abaianada”, publicada no Recife antigo.
        Cabe aqui referir ao alegre repicar dos sinos das igrejas do Recife, que é chamado “baião”. O vocábulo, nesse sentido, vem caindo em desuso na voz popular, limitando-se quase que ao âmbito dos funcionários das igrejas. Convém salientar, eram os negros dos Maracatus os homens que antigamente, exerciam essa função nos templos católicos da capital pernambucana, advindo, dessa circunstância a semelhança dos seus toques com a música percutiva do Maracatu.
        Vimos, assim, que são diversas as manifestações musicais qualificadas de “baião” ou “baiano”, todas ligadas por traços comuns: alegria, variação e vivacidade.
        Mas “baião” tem outra importantíssima acepção: o toque que os cantadores nordestinos fazem em suas violas, entre a cantoria de um e a do seu parceiro. Esse toque, em sua forma mais simples, não passa de primitiva articulação da base rítmico-harmônica sugerida pelos bordões do instrumento. Outras vezes são criados fragmentos melódicos, à guisa de interlúdio – e ambos em contraste com a melodia das vozes. Aliás, Luiz da Câmara Cascudo, pergunta se esses baiões dos violeiros não seriam “reminiscências dos prelúdios e postlúdios com que os rapsodos gregos evitavam a monotonia das longas histórias cantadas” [“Vaqueiros e Cantadores”, pág.142]. O autorizado estudioso não atenta nos marcantes indícios que lhe possibilitariam esmiuçar a comparação, a fim de reforçar a inteligente interrogação. Se não, vejamos: Na Antiguidade, a poesia já se havia desenvolvido enormemente em comparação com a música, que apenas lhe servia para ressaltar as rimas. Depois, ainda em época remota, apareceram os instrumentos qualificados de “bordões”, tais como a cornamusa, a musette e outros do gênero, os quais produziam sons graves, prolongados e invariáveis. Adquirindo novos recursos, as melodias se foram tornando mais evoluídas, enquanto eram formados os modos escalares a que os historiadores chamam de “sistema grego”. A par desse desenvolvimento, os instrumentos acompanhantes passaram a intercalar sons intermediários entre os sons das melodias cantadas [como podemos reparar, ainda hoje, ouvindo alguns violeiros], processando uma elementar variação, à maneira das “variantes” que o pesquisador de folclore observa no material comparado. E mais tarde, no Madrigal. Acompanhado, surgiram os ritornelos – pequenos e repetidos interlúdios, separando os trechos cantados. Enfim, a cada passo adiantado no campo da expressão, a música se enriquecia, acrescentando à herança adquirida os novos recursos conquistados.

[Conclusão]

        Bem, na música do violeiro nordestino, tudo isso é evidente: a maneira de cantar, valorizando mais a poética do que a música; o insistente som grave, repetido [em lugar de prolongado] e invariável, executado no bordão da viola, assim como o pequeno interlúdio instrumental fazendo às vezes do ritornelo. Estes – bordão e interlúdio – caracterizando o baião-de-viola; as escalas dos modos medievais gregos e, não raro, as discretas primitivas variações [ou “variantes”] acompanhando a melodia vocal. Certamente, compreender-se-á que todas essas particularidades tomaram feição própria no Brasil, não lhes cabendo, a rigor, a terminologia tradicional, da qual me vali apenas para favorecer a comparação.
        Luiz Cascudo apresenta como sinônimo de “baião” [refere-se ao baião-de-viola] o termo “rojão”, esclarecendo que os baiões “desdobrados” [desenvolvidos?] “servem para dançar”.
        Além dessa modalidade de baião-de-viola há outra, em que, simultaneamente, o músico produz um ruído característico e ritmado no seu instrumento [no tempo superior e com as pontas dos dedos].
        Se um dos cantadores faz uso da rabeca – o violino rústico – o baião é feito neste instrumento, mudando, porém, a forma melódica de acordo com as possibilidades oferecidas pelas particularidades da própria rabeca.
        O rudimentar processo do violeiro executar o baião-de-viola dá, para os estranhos ao seu estilo de música, a impressão de imperturbável monotonia. Entretanto, ele é bem uma variação, uma vez que é feito com intento de contrastar com a voz. Dessa forma, o momento rítmico se sobressai com expressão própria, tanto pelo seu caráter instrumental quanto pela insistência do bordão, contrapondo-se ao timbre vocal e divergindo da linha melódica que alinhava a poesia.
        Portanto, a palavra “baião” e suas derivadas traduzem – pelo menos nos exemplos apontados – “alegria”, “variação” e “vivacidade”. E, ainda, “interlúdio”, já que se intercala às falas do Bumba-meu-boi às manobras dos Cabocolinhos e se entremeia à poesia dos cantadores.
        Algumas das formas de dança do baião, a que assisti, são de grande vivacidade, requerendo especial destreza na sua prática. A música, como vimos, apresenta variedade de processos, tornando perigosa qualquer conclusão por enquanto – embora já possam ser delineados alguns dos seus aspectos mais constantes. E a poesia permite abundantes combinações formais, abordando os assuntos mais diversos.
        A meu ver, “baião” – na sua multiplicidade de formas – é tão generalizado no Nordeste, que se pode equiparar – em diversidade – às manifestações populares qualificadas de “samba” e “batuque”, correntes em todo o Brasil. E é lamentável que a radiofonia atual não permita a sua divulgação, num tão oportuno movimento de renovação da música urbana.


PEIXE, Guerra. “Variações sobre o Baião”. “Revista da Música Popular”. n.5. fevereiro de 1955. In: MARTINS, Ismênia de Lima; SOUSA, Fernando (Orgs.). Coleção Revista da Música Popular. Rio de Janeiro: Funarte/ Bem-Te-Vi Produções Literárias, 2006.p.234 - 235 e 264. 

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